Domingo, 29 de Novembro de 2009

 Foi necessário mais de um século para as galinhas aprenderem a não atravessar a estrada. A espécie acabou por se adaptar às novas condições de circulação. Mas nós não dispomos desse tempo.

Considere-se o exemplo da montagem das imagens em cinema. Atingimos um ritmo tão rápido com os videoclips, que não podemos andar mais depressa. Nos filmes de acção americanos nenhum plano deve demorar mais de três segundos. (...)

No início o cinema é uma simples técnica. Coloca-se uma câmara fixa e filma-se uma cena de teatro. Depois percebe-se que colocando uma câmara num carrinho em movimento, as imagens desfilam na câmara e depois no ecrã. (...) (a câmara) torna-se a pouco e pouco personagem. Após o que foi necessário colar as duas imagens assim obtidas. Era o início de uma nova linguagem através da montagem. (...) Como no caso da literatura, conhecemos no cinema uma "linguagem nobre". (..)

 

 

Em todo o teatro clássico, a acção tem a mesma duração daquilo que vemos. Não há cortes no interior de uma cena de Shakespeare ou de Racine. Na cena e na sala, o tempo é o mesmo. Godard foi um dos primeiros, creio eu, em A Bout de Souffle, a filmar uma cena num quarto com duas personagens e a reter na montagem apenas momentos, fragmentos dessa longa cena. A banda desenhada tinha desde há muito pensado essa construção artificial do tempo da narração. (...)

 

Há domínios do conhecimento., em que é impossível alguém pretender manter-se a par das novas evoluções durante muito tempo. É-se um génio aos vinte e dois anos porque se compreendeu tudo. mas aos vinte e cinco é preciso passar a mão. O mesmo acontece com o jogador de futebol. Depois de uma certa idade, passa-se a treinador. (...)

 

Falámos de mudanças e da sua aceleração. Mas dissemos igualmente q havia inovações técnicas q n mudavam, a saber o livro. Poderíamos acrescentar-lhe a bicicleta e mesmo os óculos. Para n falar da escrita alfabética. Uma vez a perfeição alcançada, é impossível ir mais além. (...)

 

É próprio dos profetas, verdadeiros e falsos, enganar-se constantemente. Já n sei quem dizia: "Se o futuro é futuro, será sempre inesperado". A grande qualidade do futuro é ser perpetuamente surpreendente. (...) Não são os autores do Mahabharata que prevêem o futuro. É o presente q realiza o sonho dos homens que nos precederam. (...) Para onde foi o presente? Retomo o contacto com esse momento, algures no campo, ao ouvir o sino da igreja tocar calmamente a todas as horas... "Ora são apenas cinco horas". O desaparecimento do presente não se deve apenas ao facto de as modas que duravam trinta anos durarem agora trinta dias.É também o problema do obsolescência dos objectos....

 

 

Dedicávamos alguns meses da nossa vida a aprender a andar de bicicleta mas essa bagagem, uma vez adquirida, era válida para sempre. Agora, consagramos duas semanas a compreender alguma coisa de um novo programa informático e quando o dominamos relativamente, um novo programa é proposto, imposto. A esperança de vida dos nossos avós era mais curta mas eles situavam-se num presente imutável. O mundo não mudava. Aos dezoito ou vinte anos, as pessoas entravam em reforma epistemológica. (...) A bagagem dos médicos por exemplo à saida do curso de medicina mantinha-se válida durante o resto da carreira.

 

Nos  mundos que não mudam, a que chamamos primitivos, os velhos detém o poder, uma vez que são eles que transmitem aos filhos o conhecimento. quando o mundo está em revolução permanente, são os filhos que ensinam a electrónica aos pais. E os filhos dos filhos, o que aprenderão? 

 

A Obsessão do Fogo, Umberto Eco e Jean-Claude Carriére, Conversas conduzidas por Jean-Philippe de Tonnac, Difel 2009



publicado por baldino às 23:06 | link do post | comentar

 Mais do que nunca compreendemos que a cultura é precisamente o que resta quando tudo foi esquecido. (...) O livro é como a colher, o martelo, a roda ou o cinzel. Uma vez inventados, não se pode fazer melhor. (...) a escrita é o prolongamento da mão e, nesse sentido, ela é quase biológica. Mas as nossas invenções modernas, o cinema, a rádio, a internet não são biológicas. (...)

 

Tudo isto para dizer que não há nada de mais efémero que os suportes duradouros (lembram-se da disquete, do CD-ROM, do DVD?). Assim, continuamos a poder ler um texto impresso há cinco séculos. Mas já não podemos ler, já não podemos visionar uma cassete electrónica ou um CD-ROM com apenas alguns anos.

 

 

E o cinema? Foi a partir dos anos 20 ou 30 que o cinema se tornou na Europa a Sétima Arte. Desde então torna-se válido conservar obras que pertencem agora À história da arte. Razão pela qual se criam as primeiras Cinematecas inicialmente na Russia e depois em França. Mas do ponto de vista americano o cinema não é uma arte, ele é ainda hoje um produto renovável. A cinemateca americana, veja-se bem, foi criada nos anos 70! De igual modo a primeira escola de cinema no mundo foi russa. Devemo-la a Einstein (...)

Para não falar na televisão. Conservar os arquivos de televisão parecia de inicio absurdo. (..) não aconteceu aos livros o que aconteceu aos filmes.

 

O culto da página escrita e mais tarde do livro é tão antigo quanto a escrita. (..) O sec XX é o primeiro século a deixar imagens em movimento de si mesmo, da sua história, e sons registados (...) Curioso: não dispomos de nenhum som do passado. Mas podemos imaginar, sem dúvida, que o canto dos pássaros era o mesmo, o murmurar dos regatos...

 

Buda também não escreveu nada. Mas, ao contrário de Jesus, falou durante muito mais tempo. Admite-se que Jesus teve no máximo dois ou três anos de actividade. Buda, mesmo sem escrever, ensinou pelo menos durante trinta e cinco anos. O Sermão de Benares contém as primeiras palavras de Buda, texto que contém as famosas "Quatro Nobres Verdades", representa uma folha, não mais do que isso. No inicio, o budismo resume-se a uma folha. (...)

 

Um incêndio deflagra em sua casa, sabe que obras salvaria em primeiro lugar? Digamos que talvez pegasse em Perrgrinatio in Terram Sanctam, de Bernhard von Breydenbach, Speir, Drach, de 1490 (...) Pela minha parte, pegaria sem dúvida num manuscrito de Alfred Jarry, num de André Breton e num livro de Lewis Carroll que contém uma carta dele. (..)

 

Você e eu nascemos num século que inventou pela primeira vez novas linguagens. Se as nossas conversas se desenrolassem cento e vinte anos mais cedo, apenas poderíamos evocar o teatro e o livro. A rádio, o cinema, o registo de voz e do som, a televisão, as imagens de sintese, a banda desenhada não existiram. 

 

A Obsessão do Fogo, Umberto Eco e Jean-Claude Carriére, Conversas conduzidas por Jean-Philippe de Tonnac, Difel 2009



publicado por baldino às 21:49 | link do post | comentar

Sábado, 21 de Novembro de 2009

Passava a vida no café. Ou melhor o café era a sua casa. Por isso toda a gente lá do sitio o conhecia há muitos anos.

Em todas as terras há uma personagem assim. O Toy não era diferente. Vivia da caridade alheia e da paciência do povo da terra. Sobre ele se especulava a mais mirabolante das histórias. Que já fora muito rico e inteligente. Que teve mulher e filhos. Casas e terras para além do Atlântico, na América! 

 

E o Toy fazia questão de alimentar essa versão dos factos. Contava que ainda cedo os avós tinham emigrado para a América em busca do ouro que se dizia cobria as terras do Oeste selvagem. O ano já não se lembrava ao certo mas sabia que tinha sido ainda no tempo dos cow boys.

Passava horas intermináveis a falar das lutas que os avós tinham travado contra os indios, os sioux e os cheyennes. Quando lhe perguntavam exactamente em que região da América escondia-se na poeira da memória e no desinteresse da localização.

Já não se lembra do nome dos lugares nem dos rios, nem das pessoas, ja nem sequer sabe palavras em inglês mas lembra-se das histórias que o pai lhe contava, a história das lutas dos avós no Novo Mundo e velho Oeste. E lembra-se de como falava do ouro a jorrar da terra como hoje jorra o petróleo e dos campos cobertos de pó dourado e prateado.

 

Para a posteridade o seu avó ficou conhecido como John Azores, e o seu pai Little Joe, como na Bonanza.

A mãe era filha da terra, uma india soberba, daquelas que vestiam peles de animais viradas ao contrário. Foi feita prisioneira numa das batalhas travadas e o seu pai apaixonou-se por ela. Viveram um grande amor, um amor proibido, tiveram que fugir e levados pelo vento, gone wiht the wind, correram todos os cantos desse imenso continente. E desse imenso amor desse imenso continente donde jorrava o ouro nasceu ele, o Toy, Antony para os americanos.

 

Viveram em muitos lugares mas aquele de que se lembra era muito perto do mar e por isso fez-se marinheiro. Cruzou todos os oceanos em busca de baleias para voltar sempre à America. De promoção em promoção foi promovido a capitão e dirigiu o seu próprio navio.

Tinha "uma casa na pradaria" e a sua mulher era um belo exemplar da terra de todos os sonhos. Três belos filhos preencheram-lhe a vida e encheram-lhe a alma. E ele sempre a navegar.

A sua paixão pela familia era tão grande que um dia levou-os consigo para cruzar os oceanos sem fim e conhecer a terra dos seus avós. Mas há dias assim... Levantou-se o vento e o mar. O navio não resistiu e naufragou. Nunca mais viu a sua mulher e filhos. Não sabe se alguém sobreviveu para além dele. Conta que naufragou na costa dos Açores. Que o mar que o levou o trouxe de novo ao lugar de origem.

 

Este é o resumo das histórias que conta, mais indio menos indio, mais ouro menos prata mais coisa menos coisa. 

 

 

 

Por isso aqui na terra, aqui na tasca que agora faz parte da sua vida toda a gente o conhece por Capitão, e dado o lugar de origem Capitão América.

Tal como o Super Heroi ajuda todos os que entram na taberba a alimentar os seus sonhos ou a afogá-los nos copos que bebem e como recompensa e agradecimento todos pagam um copo ao Toy, Antony, ao seu Capitão América. Ele em troca mostra-lhes como era a terra dos sonhos e fá-los sonhar com tesouros escondidos.

 

Obrigam-no a vezes sem conta contar a primeira vez que viu a Estátua. Imponente , grande, verde, livre e esmagadora. Lembra-se dessa última viagem e de ver a estátua da Liberdade. O nosso capitão América, na proa do seu Titanic de braço dado com a sua mulher e filhos americanos. E a estátua ali, impávida, agradecida, soberana. E eles de olhos pregados no seu Capitão que lhes abre os horizontes e os faz viajar sem sairem do mesmo lugar.

 

Ninguém quer saber se a história do nosso Super heroi é verdadeira ou falsa desde que a conte até ao fim. 

 

 Mike Esparza

 



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 A vida levanta pó que se farta. ..o trabalho, os amigos, os amores... são as crianças e o casamento, os pais e os irmãos, os sonhos... (...) O pó dos dias leva a que imaginemos que a vida corre por si. .. (...) e obriga-nos a lamentar, quase para sempre, o quanto desejávamos transformar o pó dos dias numa manhã de sol. se pudéssemos... é claro!

Nem sempre querer é poder.

Muitas vezes quer-se e não se pode. A diferença está entre querer... e acreditar que se pode.

Sempre q acreditamos, os milagres acontecem. E aquilo q falta a quem quer (e não pode) é um "vai, que eu olho por ti". Alguém q, algures na nossa vida, nos tenha dado a suprema bondade de acreditar naquilo em q acreditamos, e de querer o q nós queremos, q transforma o querer em poder. 


Em verdade, o truque esconde-se neste pequeno pormenor: quando se quer, ninguém consegue ir - mesmo q vá pelos seus sonhos - contra todos os q, afirmando q gostam de nós, jamais nos dizem: "vai, que eu serei a tua âncora" Ou "vai, q eu olho por ti". (Por vezes, dizem mesmo, embrulhado num silêncio cobarde: "se fores, deixo de olhar por ti").


Todos nós precisamos duma âncora para que os milagres aconteçam e, assim, se vença o pó dos dias. E talvez seja isso o que a vida tem de mais desconcertante: não são os ventos nem as marés, só as âncoras... nos permitem navegar. 

 

Eduardo Sá. Chega-te a mim e deixa-te estar. 1ª edição. Setembro de 2005 Oficina do Livro

 



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Domingo, 8 de Novembro de 2009

A primeira coisa de que me lembro é do cheiro a terra vermelha a entrar-me pelas narinas até ao fundo do meu ser. A humidade junto com a poeira transformavam a terra em barro no tempo das chuvas e foi desse barro que nasci.

 

Maria José a Maria Rapaz.

 

Também me recordo da chuva. "Cai o céu" é uma expressão muito familiar nos trópicos. Chuva abundante, espessa quase cremosa.  Chuva quente, larga, quase acolhedora.

 

Chovia durante dias com alguns intervalos. Os meus pais eram do Porto. Partiram nos anos 60 em busca de uma vida melhor. Os salários na metrópole eram miseráveis nessa altura. 

 

E quando a chuva se apagava lembro-me dos gafanhotos e Louva a Deus por tudo o que era lugar, sobretudo à noite nas montras das lojas, atraídos pelas luzes. Com cuidado aproximava-me e e agarrava-os pelas pernas. Nunca gostei de as arrancar mas divertia-me a vê-los presos, amarrados, pensando provavelmente que não tinham saída. Mas acabava por os soltar. Por estas e por outras é que me chamavam de Maria Rapaz em vez de Maria José que era o meu nome. 

 

A casa onde "nasci" é muito fácil de explicar. Tinha apenas uma divisão (hoje nalguns lugares da cidade chamar-lhe-iam um open space ou Loft). Constitui ainda hoje para mim um mistério como ainda assim parecia tudo tão no lugar e tão arrumado. Nada de "acampamentos". Dois sofás à entrada do lado direito onde Dona Mimi me questionava os deveres da escola. Um armário do mesmo lado para segurar "o quarto" onde dormia com a minha irmã, numa gaveta que saia da cama dela. Na "varanda" que servia de sala de jantar  instalara-se um frigorifico enorme, verde esverdeado. 

Em frente à porta de entrada num corredor separado por uma cortina de plástico fizemos primeiro a cozinha e a seguir a casa de banho com a respectiva banheira. Et Voilá!!!

 

Também me lembro dos sabores adocicados a fruta dos pomares, dos retratos do meu pai espalhados pela casa e do cheiro a capim. Do Natal com calor, dos porcos que eram pretos. 

 

E um dia ouvi falar da "Revolução" que tinha havido na Metrópole. Num dia em que não houve aulas ouvimos Pink Floyd e dei o meu primeiro beijo. Tinha então 13 anos e deixei de ser a Maria Rapaz.

Os sons são o mais dificil dos sentidos reproduziveis pela memória. Mas ainda me lembro do barulho dos martelos a fazer caixotes para trazer com os últimos haveres. O resto da história não costumo recordar.

"Retornei" com a minha mãe e irmã para o Porto onde nunca tinha estado. Vivemos em hoteis de 3 estrelas sustentados por uma instituição de nome IARN . E tinha pouco mais de 15 anos quando me entreguei ao primeiro homem. A minha mãe e irmã passaram a depender desses dinheiros para sobreviver. 

 

Acolheram-me numa "vivenda" onde a Tia Amélia trata do que precisamos 24 horas por dia. Só temos que estar disponíveis cada vez que ela nos chama. Não estranho muito.

A Vivenda é pouco maior que a casa de Luanda. Também está sempre tudo no lugar e nada de acampamentos. A diferença é mesmo o numero de quartos. A vivenda não é um open space. O Natal é gelado e os porcos aqui são brancos.

Óbvio que os cheiros e os sabores não são iguais.

 

As vezes sinto que sou eu o gafanhoto que alguém pega pelas coxas e receio que um dia mas arranquem tal a força com que alguns o fazem. O barulho dos martelos foi substituído pelo barulho das camas. 

Mas no geral tudo se mantém na mesma. Por vezes receio voltar ao barro de onde nasci, afundar-me na lama que lhe deu origem. Mas logo me agarro à vida e às recordações. Sinto saudades da chuva, a que lava o corpo e a alma. 

 

Visto umas meias compridas , uns sapatos de salto alto , uma capa vermelha e uma máscara negra. Sou uma das mais solicitadas. Já não sei muito bem como isso aconteceu mas a determinada altura alguém me começou a chamar de Batman e  o nome nunca mais me abandonou. Com as minhas outras colegas fazemos uma constelação de estrelas: temos a branca de neve, a mulher aranha, a amazona e a Mafaldinha. 

 

Deixei de ser a Maria José e a Maria Rapaz. Sou um Super Heroi, o meu nome é Batman e a nossa "Vivenda" é o esconderijo perfeito. Quando não estou ocupada a fazer o bem aos homens que frequentam a Vivenda vou as compras com a minha irmã, que sempre mantive longe deste mundo, e visitamos a minha mãe no Lar aonde teve que recolher.

 

Nenhuma delas conhece a minha identidade secreta. Pensam que sou secretária de um homem importante. Afinal todos os Super Herois têm uma vida normal quando não estão a salvar o Mundo. 



publicado por baldino às 15:15 | link do post | comentar

 

 

Todos conhecem a história de Sisifo que nos transporta à ideia de eterno recomeço, do nosso dia a dia. Chegado ao topo da montanha a pedra volta a rebolar e Sisifo começa tudo de novo.


Sísifo foi condenado pelos deuses a rolar para sempre uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, mas sempre que estava quase a alcaçar o topo, a pedra rolava novamente pela montanha abaixo até ao ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada de "Trabalho de Sísifo".


O trabalho de Sisifo é um absurdo? É o nosso dia a dia um absurdo? Apesar do aparente absurdo para Sisifo aquilo fazia sentido. Apesar do eterno retorno isso pode não privar a existência de todo o significado. Há sempre algo que pode fazer com que tudo possa fazer sentido. 


Aquilo que os deuses quiseram mostrar é que os humanos não têm a sua liberdade mas não deixam de ter liberdade de escolha.  Têm uma só vida para viver e devem concentrar-se nela, vivendo-a o melhor que podem e em pleno, sendo criativos dentro da repetição e monotonia que essa vida nos impõe. 



publicado por baldino às 13:12 | link do post | comentar

Quinta-feira, 5 de Novembro de 2009

O marido, o Sr. Baptista, estava em África e todos os dias lhe ligava às 17 horas.

Durante muitos anos, demasiados anos, Dona Zita se preparou para esse ritual diário. Arranjava-se como se fosse encontrar-se pessoalmente com ele. Roupa interior, saiote rendado. Os melhores vestidos dos armazéns do Chiado. Pó de arroz e batôn. 

 

Sentava-se cinco minutos antes na cadeira que tinham no hall, ao lado do telefone, e esperava pelo bater das 17 horas. Durante muitos anos foi isto que aconteceu, demasiados anos. Quando o telefone tocava Dona Zita estava sempre lá. Ali estava pronta para falar com o seu marido que estava em África. 

 

E falavam de quase tudo. Dos  filhos, dos vizinhos, da família dele e dela, dos preços que estavam pela hora da morte. E ele perguntava como ela estava vestida. E ela descrevia tudo com pormenor. E ele adorava, ofegantes despediam-se com saudades.

 

Dona Zita desligava o telefone e ali ficava então parada, imóvel, sentada. Por vezes até anoitecer (até não haver luz lá fora). Desejava então tornar-se Icaro e voar até África. Sobrevoava o oceano e chegava junto do seu homem. Passava horas naquilo. A matutar em tudo o que ele lhe contava. A sobrevoar as praias da Ilha, a baia de Luanda, a Restinga.

 

Fazia compras na Baixa, junto à Lello. Rezava na Sagrada Familia. O gelado era no Baleizão e o marisco sempre na Amazonas. Via futebol com ele nos Coqueiros e não dispensava os relatos de futebol da Metrópole ao Domingo. Vivia no Prenda e tinham um Land Rover onde iam até à Barra do Cuanza e ao Morro dos Veados. O mais longe que se aventurou foi ao Dondo. Viveu com ele os escândalos como o da Laurinda e dançou merengue e rebita até de madrugada. Farras sem fim... 

 

Depois Dona Zita levantava-se, tirava os colares e os brincos. Despia a roupa de sair, lavava a cara para aliviar do pó de arroz, voltava a vestir a bata e punha o jantar ao lume. 

 

Assim foi durante muitos anos. demasiados anos.

 

Um dia o telefone deixou de tocar mas Dona Zita continuou a vestir-se como antigamente,  como nos velhos tempos, e a voar como Icaro. Tudo se passava como antes só que o telefone não tocava.

 

Depois continuou a vestir-se mas deixou de se sentar. Alterou um pouco o ritmo. Já não se vestia só à hora do Baptista mas logo de manhã.

Ganhou-lhe o gosto e saia assim à rua, bem vestida e bem disposta. A vida seguiu o seu rumo até que um dia deixou de esperar pelo toque do telefone. Deixou de esperar pelo Baptista.

 

Do marido nunca mais soube coisa nenhuma até à poucos dias atrás. Está mal de saúde, voltou de África, trouxe uma mulher e filhos mulatos.

As vizinhas vieram logo contar-lhe mas a Zita nem quis saber. Não quer voltar a ver o Baptista.

 

Agora vai ao café a ao cinema com as amigas. Deixou a Baixa de Luanda, veste-se na Zara e veste-se para ela, nunca mais o fez para homem nenhum. Seguiu a sua vida de Super Mulher, uma vida interior onde aprendeu a viajar para onde quer, sem horas marcadas, sem esperar por ninguém. O seu Icaro de agora libertou-se das amarras do dia a dia e gosta de voar sempre mais perto do Sol. 

 

É aquela Super Mulher que vemos todos os dias. Está nas paragens dos autocarros, nos cafés, nos restaurantes.

 

Como todo o Super Herói a nossa heroína ama a vida , a sua vida. Aprendeu à sua custa que a vida não se compadece com quem espera sentado, com quem não vive e apenas imagina a vida, com quem vive a vida dos outros. 

 

Mike Esparza



publicado por baldino às 23:25 | link do post | comentar | ver comentários (1)

 

Quem não sonhou ultrapassar os seus próprios limites?

Icaro, dizem alguns, foi demasiado imprudente (Epitemeu?), voou alto demais e o Sol derreteu-lhe as asas.  Voou alto e de alto caiu. Se fosse mais vigilante, atento ao seu pensamento, teria previsto (Prometeu?) a queda e tal como seu pai Dedalo teria chegado a bom porto. 

 

Icaro foi mesmo imprudente ou apenas uma alma livre sem medo das consequências?

Tal como o espirito livre, o poeta, que se liberta do dia a dia, Icaro libertou-se da vulgaridade paterna. Deixou "rolar" .

 

O homem que é poeta não se ajeita na terra. Ou nas palavras de Baudelaire "As asas de gigante do Albatroz, impedem-no de caminhar" 



publicado por baldino às 23:07 | link do post | comentar

Prometeu, é o "previdente", é aquele que pensa primeiro, que antecipa.

Epitemeu, é o "imprevidente", é aquele que faz primeiro e pensa depois.

 

E no entanto é Prometeu que rouba o domínio das ARTES de Atena e o domínio do FOGO de Hefesto para os dar de presente ao Homem. Sobretudo o FOGO é um presente divinal pois na origem tem um atributo divino. O homem faz-se então ferrador e descobre a sua vocação de transformador da Natureza. O resto da História já conhecemos, para o bem e para o mal.

 

Sobretudo para o mal. O verdadeiro desafio do homem é então o domínio de si próprio

Quando ao querer transformar a natureza o homem perde o domínio de si próprio surgem os Frankenstein desta vida. Embora no original seja o nome do criador e não da própria criatura Frankenstein passou para a actualidade como o símbolo da criação feita monstrengo, ambiciosa e descontrolada. Imprevidente.  Dar vida a partir de matéria inanimada é de natureza Divina. 

 

O livro de Mary Shelley com o título original Frankenstein: or the Modern Prometheus retrata esse descontrole tão próprio do homem para com a natureza. 

 

E assim Prometeu se faz Epitemeu. 

 



publicado por baldino às 22:18 | link do post | comentar

Quarta-feira, 4 de Novembro de 2009

 Cinco da manhã. O irritante despertador não pára de tocar. Levanto-me a custo. Nada de surpreendente. Todos os dias me levanto a custo. Faço os poucos metros que separam a cama da casa de banho, arrasto-me mas chego.

A água, o chuveiro, a luz, tudo automaticamente e lá saio de casa meia hora depois. Ainda consigo abrir o frigorifico e engolir um copo de leite.

 

Chego ao ponto de encontro muito antes dos outros todos. Sempre foi assim. Demasiado pontual para quem vive por cá. Esperar é preferível a fazer esperar. Esperar é o que tenho feito toda a vida. Um a  um lá vão chegando os meus colegas. Enchemos a carrinha e vamos.

O condutor atravessa o que parecem ser as mesmas ruas e avenidas, nem saberia dizer por onde andamos. Andamos. 

 

Deixei de conduzir há alguns anos. Primeiro porque sustentar um carro não é para todos e depois porque já nem saberia aonde ir. Todas as novas ruas transformaram Lisboa numa Nova Lisboa que desconheço, ignoro, abandono.

Ir implica sempre saber aonde ir e saber voltar. Pelo menos para mim. Demasiadas variáveis para um velho como eu, velho e cansado. E foi com estes pensamentos que chegámos. 

 

Como autómatos ouvimos, já de pé, as instruções do condutor que é em simultâneo uma espécie de capataz. Hoje calhou-nos um centro comercial. Todos de verde e em fila indiana lá vamos. Temos 3 horas, o centro só abre às nove. 

 

Gosto quando o trabalho se divide numa casa de banho por cabeça. Dá mais para perceber qual o trabalho de cada um. Nas próximas 3 horas aquele é o meu reino. Longe do meu bairro com nome de princesa e da minha casa pequenina tenho agora 3 horas só para mim num amplo espaço limpo e arejado. 

 

No final, depois de tudo limpo, ainda tenho tempo para estender o guardanapo e tomar o pequeno almoço que trouxe alojado na lancheira. Ás vezes demoro-me mais um pouco e já entra o primeiro "cliente" , utente? Vai lavar as mãos e olha-me através do espelho. Única maneira que tenho de ser visto. Deve achar esquisito ver alguém ali naquele local a tomar o pequeno almoço mas não deve pensar muito tempo sobre isso. Cada um com os seus problemas.

 

Voltamos a encontrar-nos junto à carrinha e partimos para um dos milhares de escritórios da cidade. Lá me calha mais uma casa de banho novinha em folha. Fácil.

São agora 11 da manhã e apesar do sinal "Em Limpeza" q coloco à entrada os mais aflitos entram e saiem sem me verem. 

 

Logo no inicio da actividade, há quase 40 anos, ainda fiz vários testes à capacidade de visão dos "utentes" mas cedo percebi que me tinha tornado invisivel. Nunca percebi exactamente quando isso aconteceu mas foi de repente. Mais tarde descobri que apenas era visivel através do espelho. Quando encarado de frente não provoco qualquer reacção. Não há a minima dúvida que sou invisivel. Ninguém fala comigo e eu retribuo não falando com ninguém.

 

Excepcionalmente esboço um sorriso a uma criança, pois é verdade, as crianças também me podem ver. E existe sempre um ou outro "utente", muito a espaços no tempo, que me diz Boa tarde ou Bom dia, talvez porque tenha um coração de criança.

 

Nunca entendi nem quis explicar.

 

Habituei-me a viver como o homem invisivel. Aquele a que ninguém fala nem olha a não ser através do espelho. Basta vestir a farda verde, vermelha ou amarela e quem entra onde estou não me vê, não me fala, não olha sequer para mim.

Com os meus colegas de trabalho sei que se passa exactamente o mesmo. Mesmo as colegas mulheres que trabalham em casas de banho de homens têm o condão de desaparecer. Já o testámos inumeras vezes.  Eles fazem as suas necessidades sem as ver. 

 

Percebi q era da farda tarde demais pois passei vários anos angustiado a pensar que eram as pessoas que eram pouco humanas. 

 

Hoje jantei com o meu filho, estou tão desabituado a ser visto que fico meio sem jeito sem saber o que dizer. Mas felizmente o meu filho sempre me viu da mesma forma com ou sem farda.

 

Ele nunca percebeu que sou um Super Heroi que tem a capacidade de desaparecer quando veste a farda de trabalho.  Ainda bem. Não sei se ia gostar de saber que o pai é o homem invisivel. Todos os Super Herois que conheço têm esta face oculta que o ajuda a fazer o Bem.

 

E o meu trabalho enquanto Homem Invisivel é fazer do Mundo um local mais limpo e por isso mais seguro para todos os utentes do planeta. 

 

 



publicado por baldino às 22:58 | link do post | comentar | ver comentários (5)

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