Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa
Tenho escrito pouco mas não queria deixar de assinalar aqui a chegada do Outono. O céu de Lisboa tem estado azul com pinceladas fortes de branco e já se nota claramente que o Verão terminou.
Eu gosto particularmente do Outono. Sem a agressividade nem do Verão nem do Inverno, o Outono é a par da Primavera a estação do compromisso.
Como nasci em Angola, até aos 15 anos não tive Outono e talvez por isso goste mais do que a maior parte das pessoas.
Lembro-me que os meus livros da primária falavam do Outono e que isso era uma estação que só existia na "Metropole" , assim como os porcos cor de rosa. E lembro-me do primeiro Outono que passei em Lisboa.
Cheguei de Luanda em pleno Verão e por isso não senti grande diferença mas de repente, um dia em que subia a Almirante Reis em direcção aos Anjos, veio-me aquela aragem ligeiramente fria própria do Outono. E sem ter vivido nenhum Outono percebi que ele tinha chegado. E as páginas dos livros da primária com as folhas das arvores avermelhadas vieram-me de novo à lembrança. Decorei que era a altura do ano em que se trabalhava muito no campo, em que se plantava trigo, centeio, favas, nabos... Pelo meu lado nunca plantei nada no Outono mas desde então para cá passei, felizmente, muitos Outonos inesqueciveis.
De magoito vêm quase todas as lembranças desses Outonos em que o mundo era todo nosso, as aulas começavam tardiamente e as mãos ficavam frias de andar de motorizada. Mas , assim de repente, quase sem se dar por isso, tal como o Outono, tudo isto desaparece para sempre.
Mais tarde o Outono era a estação da Feira do Livro de Frankfurt. Dez anos seguidos, o mesmo ritual. E no caminho do aeroporto para o hotel a autoestrada era ladeada de arvores com folhas vermelhas e amarelas. E há pessoas que ligo por isso ao Outono, companheiros inesqueciveis da Feira de Frankfurt como o Eduardo Moura e o António Precatado. O verdadeiro Outono que viamos nos livros estava ali a caminho da maior feira do livro do mundo. Voltava a fazer sentido.
E agora mais um Outono que chega. Alcochete no Sabado e Magoito no Domingo para comemorar mais este regresso.
Mas o que mais queria deixar escrito sobre o que significa para mim o Outono é a estação de maior valor. Entalada entre duas estações de grande personalidade nem por isso deixa de ser quem é e de afirmar a sua individualidade. Nunca se deixou subjugar nem nunca quis ser quem não é. Com mais ou menos chuva, com mais ou menos frio o Outono é sempre o Outono. Viva o Outono
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