Foi necessário mais de um século para as galinhas aprenderem a não atravessar a estrada. A espécie acabou por se adaptar às novas condições de circulação. Mas nós não dispomos desse tempo.
Considere-se o exemplo da montagem das imagens em cinema. Atingimos um ritmo tão rápido com os videoclips, que não podemos andar mais depressa. Nos filmes de acção americanos nenhum plano deve demorar mais de três segundos. (...)
No início o cinema é uma simples técnica. Coloca-se uma câmara fixa e filma-se uma cena de teatro. Depois percebe-se que colocando uma câmara num carrinho em movimento, as imagens desfilam na câmara e depois no ecrã. (...) (a câmara) torna-se a pouco e pouco personagem. Após o que foi necessário colar as duas imagens assim obtidas. Era o início de uma nova linguagem através da montagem. (...) Como no caso da literatura, conhecemos no cinema uma "linguagem nobre". (..)
Em todo o teatro clássico, a acção tem a mesma duração daquilo que vemos. Não há cortes no interior de uma cena de Shakespeare ou de Racine. Na cena e na sala, o tempo é o mesmo. Godard foi um dos primeiros, creio eu, em A Bout de Souffle, a filmar uma cena num quarto com duas personagens e a reter na montagem apenas momentos, fragmentos dessa longa cena. A banda desenhada tinha desde há muito pensado essa construção artificial do tempo da narração. (...)
Há domínios do conhecimento., em que é impossível alguém pretender manter-se a par das novas evoluções durante muito tempo. É-se um génio aos vinte e dois anos porque se compreendeu tudo. mas aos vinte e cinco é preciso passar a mão. O mesmo acontece com o jogador de futebol. Depois de uma certa idade, passa-se a treinador. (...)
Falámos de mudanças e da sua aceleração. Mas dissemos igualmente q havia inovações técnicas q n mudavam, a saber o livro. Poderíamos acrescentar-lhe a bicicleta e mesmo os óculos. Para n falar da escrita alfabética. Uma vez a perfeição alcançada, é impossível ir mais além. (...)
É próprio dos profetas, verdadeiros e falsos, enganar-se constantemente. Já n sei quem dizia: "Se o futuro é futuro, será sempre inesperado". A grande qualidade do futuro é ser perpetuamente surpreendente. (...) Não são os autores do Mahabharata que prevêem o futuro. É o presente q realiza o sonho dos homens que nos precederam. (...) Para onde foi o presente? Retomo o contacto com esse momento, algures no campo, ao ouvir o sino da igreja tocar calmamente a todas as horas... "Ora são apenas cinco horas". O desaparecimento do presente não se deve apenas ao facto de as modas que duravam trinta anos durarem agora trinta dias.É também o problema do obsolescência dos objectos....
Dedicávamos alguns meses da nossa vida a aprender a andar de bicicleta mas essa bagagem, uma vez adquirida, era válida para sempre. Agora, consagramos duas semanas a compreender alguma coisa de um novo programa informático e quando o dominamos relativamente, um novo programa é proposto, imposto. A esperança de vida dos nossos avós era mais curta mas eles situavam-se num presente imutável. O mundo não mudava. Aos dezoito ou vinte anos, as pessoas entravam em reforma epistemológica. (...) A bagagem dos médicos por exemplo à saida do curso de medicina mantinha-se válida durante o resto da carreira.
Nos mundos que não mudam, a que chamamos primitivos, os velhos detém o poder, uma vez que são eles que transmitem aos filhos o conhecimento. quando o mundo está em revolução permanente, são os filhos que ensinam a electrónica aos pais. E os filhos dos filhos, o que aprenderão?
A Obsessão do Fogo, Umberto Eco e Jean-Claude Carriére, Conversas conduzidas por Jean-Philippe de Tonnac, Difel 2009
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